quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Via-Sacra

De nada adiantava a tia carola insistir. Não gostava de freqüentar templos abarrotados de gente, fé com hora marcada. E naquela tarde livre desejou algo impróprio para sua atribulada rotina contra o tempo. Visitaria igrejas vazias, em especial uma, aquela em que jamais colocara os pés, sempre fechada. Vandalismo e assaltos, diziam.
Situada no outro extremo da cidade, em ponto estratégico, servia de guardiã de uma avenida que cortava a metrópole. Viu-a de longe, aberta finalmente. Branca, úmida e virgem dele, estava movimentada ao vespertino. Sim, haveria um casamento. Uma união de coluna social, supôs, aquele horário em que a maioria labuta. E gente, muita gente circulava entre a Via-Sacra. Organizavam tudo: a disposição dos bancos, as flores no altar, as velas, o tapete vermelho, a chuva de pétalas que cairia do teto, a música que sairia do cravo centenário. De súbito, um fotógrafo fez sinal para que ele permanecesse à porta, queria testar a luz:
- Mais para a direita, quase, aí, está bom!
Imaginou-se o noivo, ele que sempre considerara o felizes para sempre e o até que a morte os separe de um peso mortal. Não suportou mais tanta formalidade, queria apenas sentar-se e meditar. E desapareceu quando uma velha roliça gritou do altar:
- Mais orquídeas brancas aqui!
A matriz ganhara recentemente um campanário, porto seguro para três sinos adormecidos há quase um século. Suas escadarias eram imponentes, mas preferia o atalho dos fundos, espécie de caminho secreto que conduziria ao paraíso. Assim foi. Naqueles poucos metros, avistou peões que ainda trabalhavam no restante da obra e um bando de anciãs cabisbaixas, entre cera derretida e cheiro de massa saindo do forno. Uma confeitaria ao lado era o indício da repartição dos pães, mas não vira ninguém repartir nada, nem uma vela, nem um fósforo. Avançou. E o paraíso mostrou-se barulhento. A celebração do fim da tarde se aproximava, e a voluntária atrasara-se para dispor as cadeiras extras nas laterais. Ruidosa, olhos baixos, rapidamente arrastava os assentos, alheia à prece alheia. Passou pelo Cristo morto, morto que estava, direto a uma sala ao lado da nave. Queria silêncio. Ajoelhou-se, ouvindo os murmúrios de um coxo. Mas não se incomodou, os fachos de luz no vitral apaziguaram-no. Deu de ombros para a mulher barulhenta e saiu pela frente, sinal da cruz à pia de mármore, desviando de mendigos.
Ponto turístico da cidade, a construção abrigava uma rótula, passagem de toda sorte de peregrinos. E eles surgiram em três ônibus, uma excursão da terceira idade vinda da Bahia, viu pela placa. Entrou antes, mas logo os flashes das digitais puseram fim a qualquer tentativa de concentração:
- Faz uma minha aqui também!
Blasfemou diante de Maria Madalena, indo sentar alguns bancos à frente. O teto serviu de consolo, aquele mesmo que na infância distraía-o dos sermões. Perscrutando os afrescos, avistou Adão e Eva sendo expulsos do paraíso. E teve vontade de fazer o mesmo, mesmo sem espada, com aquela gente de sotaque nortista que não o deixava em paz. Com sede, foi até a bica do estacionamento aliviar-se. Mas uma fila de garrafas plásticas aguardava sua vez. Desistiu, indo a pé ao destino seguinte.
Fora lá, 25 anos antes, que fizera primeira comunhão e crisma. E tudo estava praticamente igual, portas sem grades, poucas plantas, nenhuma gente. De novidade apenas o túmulo do frei que guardara em confissão seus primeiros deslizes e morrera de velho. Percorreu os corredores vazios, Santo Antônio, São José, Fátima, Santo Expedito, todos devidamente a postos, estáticos, vizinhos de miseráveis flores de plástico que jamais precisariam ser cuidadas. Mas um cubículo ao lado da porta principal inesperadamente fez a igreja simplória do subúrbio eclodir em uma Capela Sistina. Não soube dimensionar o tamanho do que provara. Lá dentro, um São Francisco de Assis de carne e osso e belo folheava a Bíblia, sentado, barba grisalha protuberante pescoço abaixo, olhar manso e fixo naquelas páginas amareladas e manchadas de saliva, o hábito marrom deixando escapar as sandálias seculares. Não notara sua presença, não reagira, era ele mesmo, ele e o inefável. Pensou em esboçar um gesto qualquer, queria atenção, mas a candura do homem chocou-o. O que fazia ali, por Deus? E de pronto recebeu a resposta divina. Sim, alguém ainda procurava por conforto. E todo o conforto do mundo resumia-se a um velho num cubículo apertado e imundo. Apoiou-se num banco, atordoado. E num átimo avistou que o sol que desaparecia lá fora assemelhava-se agora a uma hóstia, redondo, puro, o corpo de Cristo sem pecado. Os baianos indesejados, a beata incômoda, o coxo sussurrante, todos tinham diluído-se na memória. Lembrou-se então dos noivos desconhecidos e desejou que também eles fossem felizes. Não para sempre, mas como ele fora naquele ínfimo instante sagrado.

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