quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O sino

Saíra mais cedo do trabalho aquele dia, mil tarefas para executar na casa nova. Compraram-na havia duas semanas, a mulher atraída pelo som de um sino de vento. Sim, daqueles que ficam à espreita, entre galhos e barbas-de-pau, comandados unicamente pelo sopro divino. É aqui, disse ela. E os antigos donos nem quiseram levá-lo.
O sobrado tinha algo de Peter Pan. Nas cores quentes, no roda-meio das paredes, na meia fixada à lareira, na geladeira gorda, no embutido sob a escadaria, espécie de passagem secreta para o reino do lúdico. Ninguém estranharia se um gnomo mergulhasse na trepadeira de mil folhas que demarcava a cerca. E era próxima ao verde que a dona exercitava seu novo hobby: o artesanato. Passara a tarde em casa, entre pincéis e retalhos de madeira, naquele êxtase que costuma brotar do mais simples.
No caos do vespertino, um engarrafamento colocou-o defronte a uma plantação de girassóis. Sim, girassóis do asfalto, não da Rússia. Mesmo em meio a buzinas, sirenes e pedintes não houve como desviar os olhos daquele canteiro. Mirou seu amarelo. Não que estranhasse o espécime, tantos já vira individualmente. Mas aquele coletivo todo, mesclado a um cenário de fumaça emergindo do chão quente e um cadeirante tentando atravessar a rua, remetia a um delírio de Dali. Pronto: plantaria um girassol, e que ninguém reclamasse.
Compras do jantar feitas, dirigiu-se a um clube de vídeo. Buscava a história que daria seqüência aos comes e bebes. Bergman, Fellini, Kubrick. Não. Resnais, Hiroshima Mon Amour, perfeito. Negativo, a cópia estava na rua. Pensou em Antonioni então, mas o eclipse anunciado há dias fizera-se exatamente às 15h41min daquela tarde, e ele desistiu. Ficariam sem sobremesa os dois. E foi-se, tantos assuntos a planejar durante a refeição: Natal em família, décimo, férias, passaporte, hotel ou albergue. Mas à mesa posta de iguarias do Oriente, sob a lanterna de Bali, nem uma palavra. Em comunhão puríssima, atentavam apenas ao som do sino, eco que vinha da Malásia.

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