segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Mal-estar de um anjo (Clarice Lispector)

Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se juntasse o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já selecionaram o melhor casal de minha espécie.Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria casa própria. Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
E eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é que eu me apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre me dá uma aparência de força, disse ao chofer: "o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!" Para minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas movia-se - e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a pouco já estava pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí a pouco era a dona-de-casa de meu táxi, já tomara posse de direito do que gratuitamente me fora dado, e energicamente tomava medidas úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos, enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor, é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.
Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava, ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde demais para mim, e seu itinerário me desviaria de meu caminho. Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse que sim, seu tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz extremamente prática: "É, mas espere um pouco, vou até aquela transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que deixei lá para não molhar". "Estará ela se aproveitando de mim?", indaguei-me na velha dúvida se devo ou não deixar que se aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas, como se até seu próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se totalmente, o que me deixou tímida na minha própria casa.
E começou o meu calvário de anjo - pois a mulher, com sua voz autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières, e nem as minhas me haviam comovido. "A senhora não sabe o milagre que me aconteceu", contou-me com firmeza. "Comecei a rezar na rua, a rezar ara que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a senhora." Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim, o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: "Não me supervalorize, sou apenas um meio de transporte". Enquanto que a ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito impressionada com quem grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente mandava em mim. Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo: aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase, devia ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em conta que a chuva já devia ter lavado toda a minha distinção. Com um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio, declarei-lhe que dinheiro seria um meio tão legítimo como qualquer outro de agradecer, já que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então - diverti-me eu - bem poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo cada vez melhor, pensei: "Cada um tem o anjo que merece, veja que anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar com a idéia de um anjo interessado em roupas". Parece-me que, no meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à tolice ardente de uma senhora.
A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora começava a me deixar sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever, acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura eu já não podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora mandada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o que eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito àquela de quem eu era com tanta revolta o anjo da guarda: faça o obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada, agüentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar bem de mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na altura de Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre nós.
- Escute, disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de dois gumes também para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e depois é que segue com a senhora.
- Mas, disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois vou ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! é só um pequeno desvio para me deixar em casa!
- Pois é, respondi seca. Mas não posso entrar pelo desvio.
- Eu pago tudo! insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se lembrado de me agradecer.
- Eu é que pago tudo, insultei-a.
Ao saltar do táxi, assim como quem não quer nada, tive o cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde de Pelotas.

Crônica publicada originalmente in A Legião Estrangeira (1964).

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Caio e Clarice (II)

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu fala sobre a forte influência de Clarice Lispector em sua obra em entrevista concedida ao Caderno 2 do Jornal O Estado de São Paulo em 9 de dezembro de 1995. Caio era portador do vírus da Aids e faleceu em fevereiro de 1996.

Caderno 2 - De onde veio a influência de Clarice Lispector?

Caio - Quando eu estava com 16 anos, ganhei de uma amiga um exemplar de O Lustre. Fiquei absolutamente deslumbrado. É um livro tão surpreendente que não parece sequer escrito na língua brasileira - eu não gosto de falar em língua portuguesa. Li outros livros de Clarice até que cheguei a Perto do Coração Selvagem. Com esse livro, entrei de vez em seu universo.

Caderno 2 - Você a conheceu pessoalmente?

Caio - Em 1971, li um dia no jornal que ela estava em Porto Alegre para dar uma entrevista na TV e que depois ia autografar seus livros. Peguei todos os livros que tinha da Clarice e corri para o estúdio. Deparei, então, com uma mulher linda, enigmática, silenciosa. Aquela gente toda em torno dela e ela absolutamente quieta, sentada em uma cadeira com aquelas unhas vermelhas. Não tive coragem de me aproximar e a fiquei olhando à distância. De repente, ela me chamou e, com aquela voz cheia de erres presos, me disse: "Você senta comigo. Você se parece com dom Quixote e deve ficar a meu lado, porque eu estou muito assustada."

Caderno 2 - Ficaram amigos?

Caio - Pouco tempo depois, viajei ao Rio de Janeiro para o lançamento de Limite Branco. Assim que cheguei no hotel, telefonei para ela. "Eu quero ser a madrinha dessa noite", ela me disse. Apareceu na livraria toda de preto e ficou a noite toda sentada a meu lado, em silêncio absoluto. De vez em quando, ela se voltava para mim e, com aquela voz rouca, sussurrava: "Você é Quixote! Você é Quixote!" Nessa época, Clarice estava escrevendo Água Viva. Nos dias seguintes, ela me telefonou várias vezes me convidando para visitá-la em seu apartamento. Quando eu chegava na portaria, o porteiro me dizia: "Dona Clarice não está." Ela estava em casa, mas deixava o porteiro com essa ordem de barrar as visitas e se esquecia de mim.

Caderno 2 - Ela visitou você em Porto Alegre?

Caio - Clarice não gostava muito de viajar. Mas um dia, numa visita a Porto Alegre para um encontro literário, ela me telefonou. "Quixote, estou aqui", me disse. "Venha me levar a algum lugar diferente, porque eu não gosto de escritores." Fomos, então, caminhar pela Rua da Praia. Em um bar, pedimos um café, que foi servido no copo. "Numa xícara, por favor", ela pediu. O rapaz, paciente, fez a troca. Ela tomou o café em absoluto silêncio. Pensei que estivesse aborrecida. De repente, ela me perguntou: "Como é mesmo o nome dessa cidade?" Clarice já estava em Porto Alegre há três dias! Mas isso não importava, ela habitava mesmo o planeta Lispector.

Caderno 2 - Como você se livrou de uma influência tão forte?

Caio - Chegou uma hora em que eu me proibi de ler Clarice Lispector. Seus livros me provocam a sensação de que tudo já foi escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais ler as ficções de Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido de mim mesmo. Mas elas me perturbam muito.

Caio e Clarice

Olhem só que interessante. Uma carta do Caio Fernando Abreu a Hilda Hilst. Caio conta de seu encontro com Clarice Lispector: "Hildinha, a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e saí para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - "Fica comigo." Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde. Um grande beijo do teu Caio."

Texto retirado da Internet

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Do latim

Modum non tam verba faciunt sed voluntas (não tanto as palavras como a vontade fazem o modo).

Pulsações

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto."

"Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio."

C.L (Um Sopro de Vida)

O sino

Saíra mais cedo do trabalho aquele dia, mil tarefas para executar na casa nova. Compraram-na havia duas semanas, a mulher atraída pelo som de um sino de vento. Sim, daqueles que ficam à espreita, entre galhos e barbas-de-pau, comandados unicamente pelo sopro divino. É aqui, disse ela. E os antigos donos nem quiseram levá-lo.
O sobrado tinha algo de Peter Pan. Nas cores quentes, no roda-meio das paredes, na meia fixada à lareira, na geladeira gorda, no embutido sob a escadaria, espécie de passagem secreta para o reino do lúdico. Ninguém estranharia se um gnomo mergulhasse na trepadeira de mil folhas que demarcava a cerca. E era próxima ao verde que a dona exercitava seu novo hobby: o artesanato. Passara a tarde em casa, entre pincéis e retalhos de madeira, naquele êxtase que costuma brotar do mais simples.
No caos do vespertino, um engarrafamento colocou-o defronte a uma plantação de girassóis. Sim, girassóis do asfalto, não da Rússia. Mesmo em meio a buzinas, sirenes e pedintes não houve como desviar os olhos daquele canteiro. Mirou seu amarelo. Não que estranhasse o espécime, tantos já vira individualmente. Mas aquele coletivo todo, mesclado a um cenário de fumaça emergindo do chão quente e um cadeirante tentando atravessar a rua, remetia a um delírio de Dali. Pronto: plantaria um girassol, e que ninguém reclamasse.
Compras do jantar feitas, dirigiu-se a um clube de vídeo. Buscava a história que daria seqüência aos comes e bebes. Bergman, Fellini, Kubrick. Não. Resnais, Hiroshima Mon Amour, perfeito. Negativo, a cópia estava na rua. Pensou em Antonioni então, mas o eclipse anunciado há dias fizera-se exatamente às 15h41min daquela tarde, e ele desistiu. Ficariam sem sobremesa os dois. E foi-se, tantos assuntos a planejar durante a refeição: Natal em família, décimo, férias, passaporte, hotel ou albergue. Mas à mesa posta de iguarias do Oriente, sob a lanterna de Bali, nem uma palavra. Em comunhão puríssima, atentavam apenas ao som do sino, eco que vinha da Malásia.

Dezembro

Nas ruas não desvia-se de gente, desvia-se de pacotes.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

A modernista

Um site à altura de um dos maiores nomes da pintura brasileira. Em http://www.tarsiladoamaral.com.br/, o visitante depara com biografia, obras, curiosidades e momentos de inspiração únicos da criadora do Abaporu. Em O Ovo, de 1928 (ao lado), temos símbolos importantes da Antropofagia. A cobra grande é um bicho que assusta e tem um poder de deglutição. A partir daí, o ovo é uma gênese, o nascimento de algo novo, e esta era a proposta da Antropofagia. Esta tela pertence ao importante acervo de Gilberto Chateaubriand e está sempre sendo exibida em grandes exposições. (texto extraído do site)

Trecho

"...não era indulgente com as opiniões que discordavam da sua; e percebendo em seguida que as idéias do outro eram convencionais, limitou-se a responder por monossílabos. Desejava fazer relações mas não se decidia a tomar a iniciativa. O temor da má acolhida impedia-o de ser afável e ele escondia a sua timidez, que era grande, por trás de um exterior frio e taciturno."
Servidão Humana (W. Somerset Maugham)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A costela-de-adão

Estacionou o carro e correu para o caixa eletrônico. E na galeria já sem reboco, avó do primeiro shopping do bairro, o vital a tudo que é vivo era pesado, quente, seco. Cortara caminho para chegar antes ao dinheiro.
Ô, lugarzinho abjeto!, pensava, desviando daquele manancial de secadores de cabelo, grampos, fios postiços, tesouras, orixás, guias, baralhos. De tudo via-se naquele trajeto em forma de h minúsculo. E chamando toda atenção para si, uma enorme costela-de-adão a demarcar o centro do caos. Dividindo o espaço em mochos, pernas cruzadas e bocas em bico, seis mulheres. Seis, resignadas de sua vulgaridade congênita. Passariam um dobrado aquele dia, visto a quantidade de ambulantes. Eles vinham do Ceará em bando. E traziam nas costas aquela arte que de um ponto faz-se o universo, os vendedores de redes. Organizaram-se lado a lado, apertados, de modo a todos conseguirem sentar no único banco disponível. Menos um, exatamente aquele que atropelou-a com sua libido.
- Foi nada, não, disse ele, dirigindo-se à saleta de luz difusa, entremeada por tiras de acrílico mole e vultos de peito saliente.
Devasso. Por que tivera de atalhar, tão mais fácil e limpo seria contornar a quadra, pensou. E ele nem dignou-se a juntar sua bolsa. Observou-o entrar e, de imediato, enredar a escura de bacia larga, polvo de mil tentáculos. Ocupada em devolver à bolsa cartões de crédito, chaves, delineador e lenços de papel nem percebeu-se sob a sombra do imenso verde. Mas ali, cabisbaixa, sentiu o peso dos cinco mil anos. Ela, que também fizera-se do primeiro homem, caíra em tentação. E não haveria escape.
Como que insatisfeita da maçã, imaginou-se dona de um prazer que extrapolasse os limites do corpo, que a livrasse do fel, que pusesse fim às agruras do decente, ao que convencionava ser irrefutável. Desejava muito mais que aquele sumo insípido, aquele recheio poroso que costumava esfacelar-se ao menor contato. Poderia ela ser ela? E a pergunta tomou a dimensão do muro das lamentações, pronto que dali duas semanas visitaria a Terra Santa. Cabeça coberta e segregada dos homens, faria seu pedido e colocaria o papelzinho em uma fresta das pedras. Seria livre, enfim?
- Tem um batom ali ó, avisou um passante.
Mal ouviu já estava longe do homem, dos ambulantes, do grotesco que lhe estragara a passagem entre uma e outra extremidade de si mesma. Cifrões na mão, recorreu a uma água-de-coco.
- Agora só faltava uma rede, pensou.
Mas sentou-se no banco duro da praça. Suas costelas doíam.

sábado, 15 de dezembro de 2007

O banquete

Sarasvati era o nome do único cinema daquela cidadezinha que apenas uma vez visitara a trabalho. Não deu tempo de saber o que significava, ocupado em entrevistar um violeiro do lugar. Só anos depois ele descobriu que chamava-se assim a milenar deusa hindu das artes, com freqüência representada segurando um livro e uma cítara ou sentada meditando sobre uma flor de lótus. A Sarasvati também era atribuída a criação do sânscrito, a língua das escrituras hindus.
Era início de primavera quando convidou-os para sua casa. Marido viajando e as duas filhas com a avó, pode finalmente cumprir aquele jantar prometido há meses, ela que acabara de parir seu terceiro rebento, um livro. Optou por dividir o cardápio em dois: estrogonofe de carne para os quatro, massa ao funghi para o vegetariano, vinho e folhas verdes para todos. Começaram a chegar.
Mal entrou, a amiga ascendeu o cigarro de prazer, bolsa e cachecol feitos no tear que mantinha em casa como hobby. Deu-lhe um cinzeiro, e a outra suspirou ao reconhecer a introdução de Mulheres de Atenas. Era uma delas, tecendo longos bordados, mil quarentenas. Abriu a porta para o trio restante enquanto a dona da casa dispunha os pratos à mesa e baixava o fogo do arroz e calçava as sandálias e buscava uma toalha e falava ao telefone, tudo ao mesmo tempo, múltipla.
- Alô, oi, a ligação tá horrível, não posso muito agora, estou com gente, mas está tudo bem, beijo.
Era o seu homem, em excursão pela Patagônia.
Em cinco dentro daquele cômodo enfumaçado nos fundos, o ar começou a faltar. Encaminhou-os à sala, que em breve a ceia estaria posta. Sozinha novamente, temeu o ponto da massa, a temperatura do vinho, a maciez do boi, inseguranças tolas de quem sempre dera a cara a tapa e nunca se arrependera. Era forte, mas esfíngica, poucos conseguiam decifrá-la, fragmentada em tantas. Droga, um corte logo agora, disse, jogando longe o facão e parte dos verdes agora salpicados de vermelho. Mas o medo passara. E o banquete foi servido, ela com um curativo no polegar. À mesa sob a escadaria do sobrado, comprazeram-se sem pudor. Uma ode ao feito da amiga, então dona absoluta de si e daqueles quatro corpos relaxados de comida.
De uma harmonia de bonsai, o ambiente ouviu Chico calar-se. Um dos amigos, baiano, trouxera uma coletânea de excentricidades do Nordeste, e um princípio de baile se fez, ele dançando com a fumante compulsiva. Saciado dos cogumelos secos, o natureba aninhou-se no sofá, enquanto o terceiro, teacher de inglês, foi à cozinha buscar mais vinho. Horas depois, em volta da lareira, o quinteto olhava-se mudo, já entorpecido por Dionísio. Nisso, o defensor das vacas sagradas mirou-a com o terceiro filho em mãos e lembrou-se novamente de Sarasvati. O festival dedicado a ela acontece na primavera adocicada da Índia e é conhecido como Vasant Panchami. Nesse dia as pessoas juntam-se para venerá-la tocando música. Ele pegou o violão.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A mandala

Tudo é mandala. Ouvira a expressão durante uma palestra na escola onde alongava-se dia sim, dia não. E, redondo, aceitou.
A tarefa seria pintar uma mandala. Pergunta no verso, a interpretação viria na semana seguinte. Em casa, aproveitando pai e mãe longe, assaltou a caixa de chocolates que servia de depósito dos lápis do sobrinho. Escassas cores disponíveis, amarelo, roxo, azul, laranja e verde era o que lhe restara. Mas não se intimidou. Quiçá desse vida a mais bela mandala já vista. Começou pelo centro, amarelo. Um amarelo canário, que lembrava as definições dos antigos estojos escolares, simplórios na referência ao reino animal. Em poucos segundos, o principal fizera-se. O molde dava conta de folhas que procuravam as bordas em movimento acelerado, uma espécie de globo da morte, deixando-o tonto. Quis impor um certo limite e optou pelo laranja-atenção. Achou-o insosso, mas o estrago estava feito e sequer tinha borracha ou apontador. Nada de calcar, portanto. Tentou amenizar com um azul-turquesa, que o sobrinho certa feita perguntara o que era. É um híbrido de verde e azul que confunde nossa cachola, explicou sem muita paciência. E o pequeno entendeu menos ainda, o que é híbrido, o que é cachola? Funcionou. Amarelo-canário, laranja, azul-turquesa, a ordem parecia mantida. Restavam o verde e o roxo. O verde não deixou exibir-se muito, guardando para ele os detalhes em losango do desenho. Já para o roxo-proteção guardou o contorno duplo da mandala. E nele refestelou-se de tanto roxo. Nenhum primor, mas seja o que Deus quiser, pensou.
Semana seguinte, obra de arte entregue, acomodou-se num dos tantos pufes dispostos em círculo e aguardou alguns minutos a chegada da mestre. Bastante informal, discorreu sobre o significado das cores, propriedades, sentimentos, emoções, mitos e um sem fim de divagações, sempre intercalando cada observação com tudo é mandala. Seu bocejo foi interrompido quando ouviu amarelo-canário e azul-turquesa. Sim, ela referira-se a sua. E, pasmo, não acreditou quando a mulher revelou, dentre dezenas, ter interpretado apenas uma pintada de forma tão suave, fraca. Mas é que tinha medo de quebrar a ponta, argumentou a si mesmo, resignado. Completou ela que, forte ou não a pintura, o que importa é a harmonia de cores, o momento da pessoa, o ambiente e tal e seguiu com a palestra. Mas ele já não prestava mais atenção em nada, sentia-se suave e fraco tal como sua obra de arte recém-maculada. Estanque no assento-bola, mal ouviu a rodada de perguntas que abriu-se ao término do colóquio. Não ousou nenhuma e, para piorar, a sala toda estava rodeada de mandalas, todas mais fortes que a sua, todas mais fortes que ele. Era um gordo em cólera. E saiu, não sem antes ouvir tudo é mandala.
Em casa, café e olhos no jornal, um balão com uma interrogação enorme pairou sobre si - tal como as personagens dos gibis que devorava enquanto empanturrava-se de bolinhos de chuva. Sabia sim por que era redondo. E de volta ao periódico, atentou turvo para a abertura de uma exposição. Mas como? A cabeça abaulada, o pires, o fundo da xícara, o pingo no tapete, a espinha que brotara na testa, o espelho-bolha na sala, o carro circulando até achar uma vaga, a moeda no parquímetro, a mostra que abriria dali cinco minutos redondos, a escada em espiral, o museu tomado de círculos, o esbarrão na artista plástica redonda de gorda como ele. Tudo é mandala. Tudo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Via-Sacra

De nada adiantava a tia carola insistir. Não gostava de freqüentar templos abarrotados de gente, fé com hora marcada. E naquela tarde livre desejou algo impróprio para sua atribulada rotina contra o tempo. Visitaria igrejas vazias, em especial uma, aquela em que jamais colocara os pés, sempre fechada. Vandalismo e assaltos, diziam.
Situada no outro extremo da cidade, em ponto estratégico, servia de guardiã de uma avenida que cortava a metrópole. Viu-a de longe, aberta finalmente. Branca, úmida e virgem dele, estava movimentada ao vespertino. Sim, haveria um casamento. Uma união de coluna social, supôs, aquele horário em que a maioria labuta. E gente, muita gente circulava entre a Via-Sacra. Organizavam tudo: a disposição dos bancos, as flores no altar, as velas, o tapete vermelho, a chuva de pétalas que cairia do teto, a música que sairia do cravo centenário. De súbito, um fotógrafo fez sinal para que ele permanecesse à porta, queria testar a luz:
- Mais para a direita, quase, aí, está bom!
Imaginou-se o noivo, ele que sempre considerara o felizes para sempre e o até que a morte os separe de um peso mortal. Não suportou mais tanta formalidade, queria apenas sentar-se e meditar. E desapareceu quando uma velha roliça gritou do altar:
- Mais orquídeas brancas aqui!
A matriz ganhara recentemente um campanário, porto seguro para três sinos adormecidos há quase um século. Suas escadarias eram imponentes, mas preferia o atalho dos fundos, espécie de caminho secreto que conduziria ao paraíso. Assim foi. Naqueles poucos metros, avistou peões que ainda trabalhavam no restante da obra e um bando de anciãs cabisbaixas, entre cera derretida e cheiro de massa saindo do forno. Uma confeitaria ao lado era o indício da repartição dos pães, mas não vira ninguém repartir nada, nem uma vela, nem um fósforo. Avançou. E o paraíso mostrou-se barulhento. A celebração do fim da tarde se aproximava, e a voluntária atrasara-se para dispor as cadeiras extras nas laterais. Ruidosa, olhos baixos, rapidamente arrastava os assentos, alheia à prece alheia. Passou pelo Cristo morto, morto que estava, direto a uma sala ao lado da nave. Queria silêncio. Ajoelhou-se, ouvindo os murmúrios de um coxo. Mas não se incomodou, os fachos de luz no vitral apaziguaram-no. Deu de ombros para a mulher barulhenta e saiu pela frente, sinal da cruz à pia de mármore, desviando de mendigos.
Ponto turístico da cidade, a construção abrigava uma rótula, passagem de toda sorte de peregrinos. E eles surgiram em três ônibus, uma excursão da terceira idade vinda da Bahia, viu pela placa. Entrou antes, mas logo os flashes das digitais puseram fim a qualquer tentativa de concentração:
- Faz uma minha aqui também!
Blasfemou diante de Maria Madalena, indo sentar alguns bancos à frente. O teto serviu de consolo, aquele mesmo que na infância distraía-o dos sermões. Perscrutando os afrescos, avistou Adão e Eva sendo expulsos do paraíso. E teve vontade de fazer o mesmo, mesmo sem espada, com aquela gente de sotaque nortista que não o deixava em paz. Com sede, foi até a bica do estacionamento aliviar-se. Mas uma fila de garrafas plásticas aguardava sua vez. Desistiu, indo a pé ao destino seguinte.
Fora lá, 25 anos antes, que fizera primeira comunhão e crisma. E tudo estava praticamente igual, portas sem grades, poucas plantas, nenhuma gente. De novidade apenas o túmulo do frei que guardara em confissão seus primeiros deslizes e morrera de velho. Percorreu os corredores vazios, Santo Antônio, São José, Fátima, Santo Expedito, todos devidamente a postos, estáticos, vizinhos de miseráveis flores de plástico que jamais precisariam ser cuidadas. Mas um cubículo ao lado da porta principal inesperadamente fez a igreja simplória do subúrbio eclodir em uma Capela Sistina. Não soube dimensionar o tamanho do que provara. Lá dentro, um São Francisco de Assis de carne e osso e belo folheava a Bíblia, sentado, barba grisalha protuberante pescoço abaixo, olhar manso e fixo naquelas páginas amareladas e manchadas de saliva, o hábito marrom deixando escapar as sandálias seculares. Não notara sua presença, não reagira, era ele mesmo, ele e o inefável. Pensou em esboçar um gesto qualquer, queria atenção, mas a candura do homem chocou-o. O que fazia ali, por Deus? E de pronto recebeu a resposta divina. Sim, alguém ainda procurava por conforto. E todo o conforto do mundo resumia-se a um velho num cubículo apertado e imundo. Apoiou-se num banco, atordoado. E num átimo avistou que o sol que desaparecia lá fora assemelhava-se agora a uma hóstia, redondo, puro, o corpo de Cristo sem pecado. Os baianos indesejados, a beata incômoda, o coxo sussurrante, todos tinham diluído-se na memória. Lembrou-se então dos noivos desconhecidos e desejou que também eles fossem felizes. Não para sempre, mas como ele fora naquele ínfimo instante sagrado.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Lua em Peixes

Tinha por hábito fumar após as refeições, mas como retornara à casa dos pais teve de se adequar a novas regras. Cigarro lá fora, dizia o senhor, duro e calvo. O ritual incluia esquentar água na chaleira já queimada de tão velha, depositar duas colheres de café solúvel e açúcar mascavo na xícara roxa, sua preferida, e aguardar por alguns minutos. De pronto, tabaco, fósforos e líquido à mão, migrava para o jardim do prédio. Era seu ritual diário.
O edifício era dividido em blocos, para aproveitar melhor o desnível do terreno. Menos mal, pai e mãe residiam no mais alto, já que nunca gostara de sentir-se inferior. Mesmo assim, morava no primeiro andar, diminuta. Dois bancos de madeira faziam vizinhança com a cerca, alguns espinhos e quatro árvores em série que desconhecia o nome. Eram verdes, e isso bastava. O vaievém de moradores pela aléia não incomodava-a. Alguns cumprimentava, outros apenas mexia levemente a cabeça, cigarro em ação, ocupadíssima em relaxar naqueles poucos minutos de digestão. Sentada, observava.
Ao mirar um menino aproximando-se do portão, reconheceu-o. Era o filho da vizinha do 101, aquele que chorava toda vez que a mãe obrigava-o a entrar, ele que adorava brincar no verde. Do alto de seus quatro anos, observou a observadora. E gesticulou com a mão, imitando-a no ato de fumar, indicador e médio grudados num indo e vindo à boca, pito imaginário. Até a fumaça o garoto desenhava no ar. Olhava seu duplo patética. Mas logo enrijeceu. Repulsiva, a mãe deu um grito e arrastou o pequeno porta adentro, como quem pensasse: onde já se viu, logo essa fulana?
Permaneceu sob o sol, petrificada naquele início de primavera. À última tragada, veio à mente o menino fumante. Nisso, apagou o cigarro-bengala num vão do canteiro, não sem antes verificar se o jardim estava vazio. Não estava. O menino arrastado e fumante e tal voltara, fugidiço que era. Não quis chamá-lo, nem tentou uma aproximação. Sabia que ele só desejava imitar, fosse o que fosse, em silêncio. Lembrou-se então que o pai falara da poda de uma hera - sim, o velho era o zelador do prédio. E quando olhou a parede percebeu apenas os resquícios do que uma vez fora um tapete vivo. No vazio das três da tarde, viu a chance de aproveitar o sol e projetar sombras naquele muro de concreto limpo. De sua imaginação e habilidade corporal, ela que um dia fora bailarina, saíram patos, girafas, coelhos, cavalos, até a cabeça sem cabelo do pai saiu. Estupefato, o menino viciado não correspondeu. Tentou imitar, mas a coordenação motora falhara e ele saiu correndo aos gritos da mãe:
- Bruno, vem ver!
Ela ouviu latidos na janela. Era o chamado de um vira-latas marrom com manchas brancas e aparência de subnutrido. A outra havia comprado-o em uma feira de animais de rua, uma surpresa para o filho neste Natal. Minutos depois, o garoto voltava ao jardim acompanhado de raquítico ser. Mas o ex-fumante agora mal olhava-a, o cão a fazer-lhe festas. Ela observou a cena e entrou. Toda sua atuação fora inútil. E a vizinha estava vingada.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O deus hindu

A duas quadras da floricultura decidiu que passaria a se chamar Ramesh. Almejava equiparar-se a alguma milenar divindade hindu, mas nada sabia sobre mitologia, daí o deus inventado na hora mesmo. Achava Ramesh um nome distinto, digno de si, ele que pretendia enviar flores a um desafeto que completava anos.
Atrás de uma cortina de musgos e bambus improvisados, a florista dava forma a um arranjo. Era época de muitas encomendas, e a mulher pediu-lhe paciência. Ele, que nunca fora muito acostumado a esperar, esperou. E nesse intervalo, pouco à vontade, esboçou um desejo: que a encomenda ajudasse a reatar os laços afetivos de outrora. Ela entendeu e sugeriu lírios da paz. Faria depois, mas ele insistiu em acompanhar todo o processo.
Teve de ter mais paciência, e aproveitou para fotografar mentalmente algumas espécies espalhadas pela loja. Dos gerânios manteve distância. Achava-os perigosos em seu odor e forma - uma antiga vizinha reclamou do canteiro cultivado na janela, tachou-os de pragas e, desde então, passara a evitá-los. Foi atraído por rosas japonesas, identificadas pela etiqueta e, em seguida, pelo discurso verborrágico de outra funcionária ansiosa por comissão - eram as flores mais caras da loja. Hipnóticas, pareciam exigir atenção única e exclusivamente para sua beleza fugaz. Mas para ele, rosas eram rosas em qualquer lugar do mundo e ponto. Ao alto, as mil folhas de uma samambaia eram de uma vastidão que não compreendia bem, sempre tão enxuto. Ouvira dizer que não são indicadas para dentro de casa, pois puxam a energia para baixo. Evitou perguntar, temerário que era de sua ignorância em Feng Shui. Avançou em direção aos copos-de-leite, aqueles mesmos que odiava ver retratados em naturezas-mortas espalhadas por shoppings e restaurantes. Como desprezava os que pintam copos-de-leite. Mas no balde em que estavam displicentemente jogados eram de tal simetria de amor que mereceram seu perdão. Perdoou, pois sempre achara a perfeição aviltante.
Nisso, outra cliente, apressada e abrupta, ordenou por que a planta encomendada demorara tanto a ficar pronta. De sopetão, ergueu-a ela mesma e saiu. Era uma comigo-ninguém-pode, e ele teve a certeza de que o verde não vingaria. Viu-se na mulher e odiou ambos.
Voltou a si, enquanto as mãos ágeis da comerciante instintivamente moldavam um cachepô de argila. Algumas noções de ikebana depois, a vida nascera. Era discreta, um maço de talos rodeado por folhas avulsas, de onde emergiam quatro lírios de um branco antigo: dois abertos, um semi-aberto e o quarto ainda fechado. Escolhido e preenchido o cartão azul, solicitou que a encomenda chegasse a seu destino naquela mesma tarde de sexta-feira. Despediu-se, feliz.
Três dias de calor insuportável se fizeram e nada, nenhuma resposta. Falhou tudo, pensara.
Às vésperas do temporal que se formava no céu do entardecer de segunda-feira, enquanto mandava emoldurar xilogravuras, a reação chegou abrupta, tal como a mulher comigo-ninguém-pode. Mas ele não murchou. Expandiu-se em felicidade até não caber mais em Ramesh. Não precisava mais ser um falso deus, ser ele mesmo bastava. Foi quando teve a certeza de que o quarto lírio desabrochara.

Revelação à mesa

Bolinhos de arroz temperados com erva-doce. Trivial, sim. Mas fundamental para recuperar aquilo que havia perdido e nem sabia exatamente o que era. Prostrou-se a observá-los, vendo o prato esvaziar-se aos poucos. O que teriam de tão perturbador, que saciavam sua fome de passado e felicidade os bolinhos?
Em menino, adorava a iguaria, mas sempre achou-a simplista demais. Desprezava aquela coisa formada a partir do que restou do dia anterior. Mas, pensou, o que não deriva do ontem, meu Deus? O óbvio é vital.
Lembrou-se de quando C.L. revelou em crônica um diálogo com uma antiga empregada:
- Trivial? Não, senhora, só sei fazer comida de pobre.
A miséria não encontrava-se à mesa. Localizava-se no deserto onde ele havia adentrado há tempos, aridez que por ora não vislumbrava açudes, córregos, azul-turquesa ou verde-água, nada que lembrasse matéria viva corrente ou estática. Concluira que a redenção poderia estar não no líquido, mas na falta de. Poderia aprender, e estava aprendendo, com a ausência de tudo o que lhe garantira a sobrevida recente e dolosa. A ausência de... ensina, sabia ele.
Satisfeito, prato vazio, foi escrever. Era a salvação a caminho.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Dois Eremitas (5)


À noite, teria as respostas para as perguntas que estragaram sua tarde.

A noite mostrou-se agradável. Uma chuva leve apaziguava o calor que aproximara-se dos 35 graus à tarde. Também ganhara um gravura de um amigo. Belíssima xilo, cujo desenho em branco, preto e vermelho destacava silhuetas femininas.
Fizera o primeiro contato às 21h, mas começaram a conversar apenas às 22h20min. Feituras de textos interpunham-se ao diálogo dos dois. 22h25min marcou o início do que X esperava ouvir e falar para Y. Mas os trovões e a chuva interromperam tudo. Queria perguntar se a natureza sabe o que faz. Mas achou melhor responder de vez e acabar com a dúvida: a natureza sabe o que faz.

Las canciones de Almodóvar

Quando o disco Las Canciones de Almodóvar chegou às prateleiras em 1997, não houve fã que não garantisse o seu. Estavam lá os boleros, baladas e tangos que permeavam as aventuras amorosas de seus tresloucados personagens. Dez anos depois, chega ao mercado espanhol (no Brasil deve demorar um pouco mais) o CD duplo B.S.O. Almodóvar, reunindo 29 canções. Estão lá grande parte das músicas do disco de 1997, acrescidas das músicas de seus filmes realizados após aquele ano, como Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela, Má Educação e Volver.
É a chance de ouvir clássicos como Por Toda Minha Vida (do disco Elis & Tom, de 1974), Cucurrucucu Paloma (com Caetano Veloso), ambos de Fale com Ela (2002); e Ne Me Quitte Pas (na voz cálida de Maysa, bem antes de a música aparecer como trilha da minissérie Presença de Anita) - Almodóvar utilizou o clássico de Jacques Brel em A Lei do Desejo (1986). Do filme mais recente do cineasta, o tango Volver, de Gardel, é interpretado visceralmente por Estrella Morente. Sem falar nos indispensáveis Lucho Gatica, Chavela Vargas, Sara Montiel, La Lupe, Luz Casal, Miguel de Molina e o Trio Los Panchos.
Da série discografia básica.




Lunaticos del tango


A passagem do Gotan Project pelo RS contribuiu também para a divulgação no Brasil do disco de remixes Inspiracion-Expiracion. Uma das melhores faixas, Confianzas, traz os vocais da atriz Cecilia Roth, musa de Almodóvar e protagonista de Tudo Sobre Minha Mãe.


Confianzas
Se sienta a la mesa y escribe
«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice

y más: esos versos no han de servirle para que
peones maestros hacheros vivan mejor
coman mejor o él mismo coma viva mejor
ni para enamorar a una le servirán

no ganará plata con ellos
no entrará al cine gratis con ellos
no le darán ropa por ellos
no conseguirá tabaco o vino por ellos
ni papagayos ni bufandas ni barcos
ni toros ni paraguas conseguirá por ellos
si por ellos fuera a la lluvia lo mojará
no alcanzará perdón o gracia por ellos

«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice
se sienta a la mesa y escribe



Dois Eremitas (4)


A hora em que encontrasse novamente Y.

Passara a tarde em casa, ora escrevendo ora dirigindo-se à cozinha para tomar café e provar biscoitos de erva-doce trazidos pela mãe . Não definia o que sentia, mas sabia que era bom. Tal como a menina Clarice de 'Felicidade Clandestina', fingia que não cultivava tal sentimento para ter a surpresa de, subitamente, tê-lo. Sabia que ter era o começo de algo que poderia ser perdido. Mas não queria compactuar com a mediocridade de viver.
Sim, tinha uma esperança. E ela também era verde e frágil. Como controlar isso? Encontraria Y e diria que não era mais a mesma pessoa, que estava redescobrindo o prazer de ser? Não, a fragilidade não poderia emergir tão reveladora.
À noite, teria as respostas para as perguntas que estragaram sua tarde.

Dois Eremitas (3)

Eram seres sutis.




Mas também eram seres cansados. E naquela noite de domingo despediram-se com cansaço e certa reserva. A reserva que garante o alimento do dia seguinte. Foram dormir, cada qual em seu mundo escuro. A escuridão acalentava um princípio de angústia do mais tímido, que chamaremos aqui de X.
X abriu 'Água Viva' sem escolher página. Caiu na 27. Sublinhado lia-se: 'Há muita coisa a dizer que não sei como dizer'. Logo fechou-o. Saberia o que dizer, sim, mas na hora certa.
A hora em que encontrasse novamente Y.

Dois Eremitas (2)

"Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo."
Sim, o conto 'Amor' é lindo, disse do outro lado. Assim como 'Começos de uma Fortuna', Laços de Família' e 'O Ovo e a Galinha'. Esse último, completou o outro, não entendi muito bem, acho-o hermético. Ao que o outro retrucou, mas sem pernosticismo:
- Para mim foi claro.
A autora dominou o diálogo por um longo tempo. Tempo em que eles perscrutaram-se com a leveza de tudo o que é novo, importando-se menos com o julgamento e mais com as descobertas. Eram seres sutis.


Dois Eremitas (1)

Fotos: Henri Cartier-Bresson


A conversa seguia seu rumo, com respostas imediatas a indagações banais do cotidiano. Sim, pequenas epifanias. Onde moravam, os locais que costumavam freqüentar, o último filme a que tinham assistido. A revelação maior deu-se quando a pergunta recaiu sobre literatura: 'quais seus autores preferidos?'.
'Caio Fernando Abreu, Guimarães Rosa e, ACIMA DE TUDO, Clarice Lispector'. Não sei se o grifo em maiúsculo foi na expressão citada ou no nome da autora, não importa, mas algo se fez naquele momento daquele dia, daquele mês, daquele ano em que se completavam os 30 anos sem C.L., sem G.H., sem Rodrigo S.M., sem Angela Pralini, sem Joana, sem Lóri, sem Ulisses, sem Macabéia.
Tal como no conto 'Tentação', eles tinham assemelhado-se ao basset ruivo e à menina soluçante ao degrau da porta, esperando pelo bonde.
(...) foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo (...)'.

30 anos sem Clarice




Neste domingo, dia 9 de dezembro de 2007, completaram-se 30 anos da morte de Clarice Lispector. Tempo de descobrir e redescobrir a obra de uma estrela da nossa melhor literatura.
É a hora da estrela.

A inspiração

O nome deste blog remete à obra 'Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres', de Clarice Lispector, publicada em 1969. O romance é uma longa tessitura de olhares, de gestos e aproximações que culminaram com o encontro de dois seres que vencem o desconhecido para celebrar a comunhão.
Inovador desde a primeira página, o romance inicia-se por uma vírgula e fecha com os dois pontos, explicitando ao leitor que a obra abre 'sem um início' e continua 'sem um final', assim como a aprendizagem do amor pelos protagonistas.
Leitura obrigatória!

Trecho:
"Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso."