quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Lua em Peixes

Tinha por hábito fumar após as refeições, mas como retornara à casa dos pais teve de se adequar a novas regras. Cigarro lá fora, dizia o senhor, duro e calvo. O ritual incluia esquentar água na chaleira já queimada de tão velha, depositar duas colheres de café solúvel e açúcar mascavo na xícara roxa, sua preferida, e aguardar por alguns minutos. De pronto, tabaco, fósforos e líquido à mão, migrava para o jardim do prédio. Era seu ritual diário.
O edifício era dividido em blocos, para aproveitar melhor o desnível do terreno. Menos mal, pai e mãe residiam no mais alto, já que nunca gostara de sentir-se inferior. Mesmo assim, morava no primeiro andar, diminuta. Dois bancos de madeira faziam vizinhança com a cerca, alguns espinhos e quatro árvores em série que desconhecia o nome. Eram verdes, e isso bastava. O vaievém de moradores pela aléia não incomodava-a. Alguns cumprimentava, outros apenas mexia levemente a cabeça, cigarro em ação, ocupadíssima em relaxar naqueles poucos minutos de digestão. Sentada, observava.
Ao mirar um menino aproximando-se do portão, reconheceu-o. Era o filho da vizinha do 101, aquele que chorava toda vez que a mãe obrigava-o a entrar, ele que adorava brincar no verde. Do alto de seus quatro anos, observou a observadora. E gesticulou com a mão, imitando-a no ato de fumar, indicador e médio grudados num indo e vindo à boca, pito imaginário. Até a fumaça o garoto desenhava no ar. Olhava seu duplo patética. Mas logo enrijeceu. Repulsiva, a mãe deu um grito e arrastou o pequeno porta adentro, como quem pensasse: onde já se viu, logo essa fulana?
Permaneceu sob o sol, petrificada naquele início de primavera. À última tragada, veio à mente o menino fumante. Nisso, apagou o cigarro-bengala num vão do canteiro, não sem antes verificar se o jardim estava vazio. Não estava. O menino arrastado e fumante e tal voltara, fugidiço que era. Não quis chamá-lo, nem tentou uma aproximação. Sabia que ele só desejava imitar, fosse o que fosse, em silêncio. Lembrou-se então que o pai falara da poda de uma hera - sim, o velho era o zelador do prédio. E quando olhou a parede percebeu apenas os resquícios do que uma vez fora um tapete vivo. No vazio das três da tarde, viu a chance de aproveitar o sol e projetar sombras naquele muro de concreto limpo. De sua imaginação e habilidade corporal, ela que um dia fora bailarina, saíram patos, girafas, coelhos, cavalos, até a cabeça sem cabelo do pai saiu. Estupefato, o menino viciado não correspondeu. Tentou imitar, mas a coordenação motora falhara e ele saiu correndo aos gritos da mãe:
- Bruno, vem ver!
Ela ouviu latidos na janela. Era o chamado de um vira-latas marrom com manchas brancas e aparência de subnutrido. A outra havia comprado-o em uma feira de animais de rua, uma surpresa para o filho neste Natal. Minutos depois, o garoto voltava ao jardim acompanhado de raquítico ser. Mas o ex-fumante agora mal olhava-a, o cão a fazer-lhe festas. Ela observou a cena e entrou. Toda sua atuação fora inútil. E a vizinha estava vingada.

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