quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Caio e Clarice (II)

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu fala sobre a forte influência de Clarice Lispector em sua obra em entrevista concedida ao Caderno 2 do Jornal O Estado de São Paulo em 9 de dezembro de 1995. Caio era portador do vírus da Aids e faleceu em fevereiro de 1996.

Caderno 2 - De onde veio a influência de Clarice Lispector?

Caio - Quando eu estava com 16 anos, ganhei de uma amiga um exemplar de O Lustre. Fiquei absolutamente deslumbrado. É um livro tão surpreendente que não parece sequer escrito na língua brasileira - eu não gosto de falar em língua portuguesa. Li outros livros de Clarice até que cheguei a Perto do Coração Selvagem. Com esse livro, entrei de vez em seu universo.

Caderno 2 - Você a conheceu pessoalmente?

Caio - Em 1971, li um dia no jornal que ela estava em Porto Alegre para dar uma entrevista na TV e que depois ia autografar seus livros. Peguei todos os livros que tinha da Clarice e corri para o estúdio. Deparei, então, com uma mulher linda, enigmática, silenciosa. Aquela gente toda em torno dela e ela absolutamente quieta, sentada em uma cadeira com aquelas unhas vermelhas. Não tive coragem de me aproximar e a fiquei olhando à distância. De repente, ela me chamou e, com aquela voz cheia de erres presos, me disse: "Você senta comigo. Você se parece com dom Quixote e deve ficar a meu lado, porque eu estou muito assustada."

Caderno 2 - Ficaram amigos?

Caio - Pouco tempo depois, viajei ao Rio de Janeiro para o lançamento de Limite Branco. Assim que cheguei no hotel, telefonei para ela. "Eu quero ser a madrinha dessa noite", ela me disse. Apareceu na livraria toda de preto e ficou a noite toda sentada a meu lado, em silêncio absoluto. De vez em quando, ela se voltava para mim e, com aquela voz rouca, sussurrava: "Você é Quixote! Você é Quixote!" Nessa época, Clarice estava escrevendo Água Viva. Nos dias seguintes, ela me telefonou várias vezes me convidando para visitá-la em seu apartamento. Quando eu chegava na portaria, o porteiro me dizia: "Dona Clarice não está." Ela estava em casa, mas deixava o porteiro com essa ordem de barrar as visitas e se esquecia de mim.

Caderno 2 - Ela visitou você em Porto Alegre?

Caio - Clarice não gostava muito de viajar. Mas um dia, numa visita a Porto Alegre para um encontro literário, ela me telefonou. "Quixote, estou aqui", me disse. "Venha me levar a algum lugar diferente, porque eu não gosto de escritores." Fomos, então, caminhar pela Rua da Praia. Em um bar, pedimos um café, que foi servido no copo. "Numa xícara, por favor", ela pediu. O rapaz, paciente, fez a troca. Ela tomou o café em absoluto silêncio. Pensei que estivesse aborrecida. De repente, ela me perguntou: "Como é mesmo o nome dessa cidade?" Clarice já estava em Porto Alegre há três dias! Mas isso não importava, ela habitava mesmo o planeta Lispector.

Caderno 2 - Como você se livrou de uma influência tão forte?

Caio - Chegou uma hora em que eu me proibi de ler Clarice Lispector. Seus livros me provocam a sensação de que tudo já foi escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais ler as ficções de Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido de mim mesmo. Mas elas me perturbam muito.

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