terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O deus hindu

A duas quadras da floricultura decidiu que passaria a se chamar Ramesh. Almejava equiparar-se a alguma milenar divindade hindu, mas nada sabia sobre mitologia, daí o deus inventado na hora mesmo. Achava Ramesh um nome distinto, digno de si, ele que pretendia enviar flores a um desafeto que completava anos.
Atrás de uma cortina de musgos e bambus improvisados, a florista dava forma a um arranjo. Era época de muitas encomendas, e a mulher pediu-lhe paciência. Ele, que nunca fora muito acostumado a esperar, esperou. E nesse intervalo, pouco à vontade, esboçou um desejo: que a encomenda ajudasse a reatar os laços afetivos de outrora. Ela entendeu e sugeriu lírios da paz. Faria depois, mas ele insistiu em acompanhar todo o processo.
Teve de ter mais paciência, e aproveitou para fotografar mentalmente algumas espécies espalhadas pela loja. Dos gerânios manteve distância. Achava-os perigosos em seu odor e forma - uma antiga vizinha reclamou do canteiro cultivado na janela, tachou-os de pragas e, desde então, passara a evitá-los. Foi atraído por rosas japonesas, identificadas pela etiqueta e, em seguida, pelo discurso verborrágico de outra funcionária ansiosa por comissão - eram as flores mais caras da loja. Hipnóticas, pareciam exigir atenção única e exclusivamente para sua beleza fugaz. Mas para ele, rosas eram rosas em qualquer lugar do mundo e ponto. Ao alto, as mil folhas de uma samambaia eram de uma vastidão que não compreendia bem, sempre tão enxuto. Ouvira dizer que não são indicadas para dentro de casa, pois puxam a energia para baixo. Evitou perguntar, temerário que era de sua ignorância em Feng Shui. Avançou em direção aos copos-de-leite, aqueles mesmos que odiava ver retratados em naturezas-mortas espalhadas por shoppings e restaurantes. Como desprezava os que pintam copos-de-leite. Mas no balde em que estavam displicentemente jogados eram de tal simetria de amor que mereceram seu perdão. Perdoou, pois sempre achara a perfeição aviltante.
Nisso, outra cliente, apressada e abrupta, ordenou por que a planta encomendada demorara tanto a ficar pronta. De sopetão, ergueu-a ela mesma e saiu. Era uma comigo-ninguém-pode, e ele teve a certeza de que o verde não vingaria. Viu-se na mulher e odiou ambos.
Voltou a si, enquanto as mãos ágeis da comerciante instintivamente moldavam um cachepô de argila. Algumas noções de ikebana depois, a vida nascera. Era discreta, um maço de talos rodeado por folhas avulsas, de onde emergiam quatro lírios de um branco antigo: dois abertos, um semi-aberto e o quarto ainda fechado. Escolhido e preenchido o cartão azul, solicitou que a encomenda chegasse a seu destino naquela mesma tarde de sexta-feira. Despediu-se, feliz.
Três dias de calor insuportável se fizeram e nada, nenhuma resposta. Falhou tudo, pensara.
Às vésperas do temporal que se formava no céu do entardecer de segunda-feira, enquanto mandava emoldurar xilogravuras, a reação chegou abrupta, tal como a mulher comigo-ninguém-pode. Mas ele não murchou. Expandiu-se em felicidade até não caber mais em Ramesh. Não precisava mais ser um falso deus, ser ele mesmo bastava. Foi quando teve a certeza de que o quarto lírio desabrochara.

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