segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A costela-de-adão

Estacionou o carro e correu para o caixa eletrônico. E na galeria já sem reboco, avó do primeiro shopping do bairro, o vital a tudo que é vivo era pesado, quente, seco. Cortara caminho para chegar antes ao dinheiro.
Ô, lugarzinho abjeto!, pensava, desviando daquele manancial de secadores de cabelo, grampos, fios postiços, tesouras, orixás, guias, baralhos. De tudo via-se naquele trajeto em forma de h minúsculo. E chamando toda atenção para si, uma enorme costela-de-adão a demarcar o centro do caos. Dividindo o espaço em mochos, pernas cruzadas e bocas em bico, seis mulheres. Seis, resignadas de sua vulgaridade congênita. Passariam um dobrado aquele dia, visto a quantidade de ambulantes. Eles vinham do Ceará em bando. E traziam nas costas aquela arte que de um ponto faz-se o universo, os vendedores de redes. Organizaram-se lado a lado, apertados, de modo a todos conseguirem sentar no único banco disponível. Menos um, exatamente aquele que atropelou-a com sua libido.
- Foi nada, não, disse ele, dirigindo-se à saleta de luz difusa, entremeada por tiras de acrílico mole e vultos de peito saliente.
Devasso. Por que tivera de atalhar, tão mais fácil e limpo seria contornar a quadra, pensou. E ele nem dignou-se a juntar sua bolsa. Observou-o entrar e, de imediato, enredar a escura de bacia larga, polvo de mil tentáculos. Ocupada em devolver à bolsa cartões de crédito, chaves, delineador e lenços de papel nem percebeu-se sob a sombra do imenso verde. Mas ali, cabisbaixa, sentiu o peso dos cinco mil anos. Ela, que também fizera-se do primeiro homem, caíra em tentação. E não haveria escape.
Como que insatisfeita da maçã, imaginou-se dona de um prazer que extrapolasse os limites do corpo, que a livrasse do fel, que pusesse fim às agruras do decente, ao que convencionava ser irrefutável. Desejava muito mais que aquele sumo insípido, aquele recheio poroso que costumava esfacelar-se ao menor contato. Poderia ela ser ela? E a pergunta tomou a dimensão do muro das lamentações, pronto que dali duas semanas visitaria a Terra Santa. Cabeça coberta e segregada dos homens, faria seu pedido e colocaria o papelzinho em uma fresta das pedras. Seria livre, enfim?
- Tem um batom ali ó, avisou um passante.
Mal ouviu já estava longe do homem, dos ambulantes, do grotesco que lhe estragara a passagem entre uma e outra extremidade de si mesma. Cifrões na mão, recorreu a uma água-de-coco.
- Agora só faltava uma rede, pensou.
Mas sentou-se no banco duro da praça. Suas costelas doíam.

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