sábado, 15 de dezembro de 2007

O banquete

Sarasvati era o nome do único cinema daquela cidadezinha que apenas uma vez visitara a trabalho. Não deu tempo de saber o que significava, ocupado em entrevistar um violeiro do lugar. Só anos depois ele descobriu que chamava-se assim a milenar deusa hindu das artes, com freqüência representada segurando um livro e uma cítara ou sentada meditando sobre uma flor de lótus. A Sarasvati também era atribuída a criação do sânscrito, a língua das escrituras hindus.
Era início de primavera quando convidou-os para sua casa. Marido viajando e as duas filhas com a avó, pode finalmente cumprir aquele jantar prometido há meses, ela que acabara de parir seu terceiro rebento, um livro. Optou por dividir o cardápio em dois: estrogonofe de carne para os quatro, massa ao funghi para o vegetariano, vinho e folhas verdes para todos. Começaram a chegar.
Mal entrou, a amiga ascendeu o cigarro de prazer, bolsa e cachecol feitos no tear que mantinha em casa como hobby. Deu-lhe um cinzeiro, e a outra suspirou ao reconhecer a introdução de Mulheres de Atenas. Era uma delas, tecendo longos bordados, mil quarentenas. Abriu a porta para o trio restante enquanto a dona da casa dispunha os pratos à mesa e baixava o fogo do arroz e calçava as sandálias e buscava uma toalha e falava ao telefone, tudo ao mesmo tempo, múltipla.
- Alô, oi, a ligação tá horrível, não posso muito agora, estou com gente, mas está tudo bem, beijo.
Era o seu homem, em excursão pela Patagônia.
Em cinco dentro daquele cômodo enfumaçado nos fundos, o ar começou a faltar. Encaminhou-os à sala, que em breve a ceia estaria posta. Sozinha novamente, temeu o ponto da massa, a temperatura do vinho, a maciez do boi, inseguranças tolas de quem sempre dera a cara a tapa e nunca se arrependera. Era forte, mas esfíngica, poucos conseguiam decifrá-la, fragmentada em tantas. Droga, um corte logo agora, disse, jogando longe o facão e parte dos verdes agora salpicados de vermelho. Mas o medo passara. E o banquete foi servido, ela com um curativo no polegar. À mesa sob a escadaria do sobrado, comprazeram-se sem pudor. Uma ode ao feito da amiga, então dona absoluta de si e daqueles quatro corpos relaxados de comida.
De uma harmonia de bonsai, o ambiente ouviu Chico calar-se. Um dos amigos, baiano, trouxera uma coletânea de excentricidades do Nordeste, e um princípio de baile se fez, ele dançando com a fumante compulsiva. Saciado dos cogumelos secos, o natureba aninhou-se no sofá, enquanto o terceiro, teacher de inglês, foi à cozinha buscar mais vinho. Horas depois, em volta da lareira, o quinteto olhava-se mudo, já entorpecido por Dionísio. Nisso, o defensor das vacas sagradas mirou-a com o terceiro filho em mãos e lembrou-se novamente de Sarasvati. O festival dedicado a ela acontece na primavera adocicada da Índia e é conhecido como Vasant Panchami. Nesse dia as pessoas juntam-se para venerá-la tocando música. Ele pegou o violão.

Um comentário:

Mugnolini disse...

Muito, muito bom.
Como que tu nem tinha contado que andava blogueiro?