terça-feira, 23 de junho de 2009

As Águas do Mundo

Há poucos dias vi essa foto de um amigo, sozinho, defronte à vastidão do mar. Imediatamente veio à memória o belíssimo conto As Águas do Mundo, publicado originalmente em 1968 na coluna semanal que Clarice escrevia no Jornal do Brasil. Depois, o trecho foi integrado ao romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, publicado no ano seguinte, e em várias outras coletâneas de contos posteriores, como Felicidade Clandestina (1971).
Para mim, trata-se de um dos textos de Clarice mais líricos e dotados de simbolismos, com novos significados a cada leitura. Impossível entrar no mar da mesma forma após lê-lo. Publico aqui, além do conto completo, duas fotos (a do amigo e uma roubada da Internet, produzida para ilustrar o texto).

As Águas do Mundo

Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra. São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.

Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal -- a alegria é uma fatalidade -- já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda -- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo -- espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.

E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate.
A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas -- ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas -- mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe - sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.

domingo, 3 de maio de 2009

O leitor desconhecido

Comprei em um sebo um exemplar usado de Minhas Queridas, coletânea de cartas enviadas por Clarice às irmãs durante o período em que morou fora do Brasil (1944 a 1959). Folheando a obra descobri alguém que também costuma sublinhar frases, parágrafos, fragmentos, até palavras desconhecidas, sem nenhuma espécie de culpa por isso. Sim, porque para alguns deixar sua marca em páginas é crime inafiançável. Penso em tudo que já pus aspas, destaquei, sublinhei, para ler e reler, e reproduzo aqui o que o antigo dono (ou dona) do livro supôs digno de grifo (inclusive, o leitor deu-se o trabalho de copiar vários trechos na última página). Mas interessante mesmo seria encontrá-lo para trocarmos nossas impressões sobre Clarice.

"Mas às vezes basta resolver estar simples, e o milagre se realiza: tudo fica mais simples."
"Não existem lugares, existem pessoas."
"Não fazer nada é uma das ocupações mais produtivas do homem."
"A vida é igual em toda parte, e o que é necessário é a gente ser a gente."
"Tem uma teoria de emoções que diz que a gente fica alegre porque ri."
"Os meses passam depresa, felizmente. Os dias, às vezes, é que não passam."
"...faço tudo na ponta dos dedos sem me misturar a nada."
"Só chaleira fervendo é que levanta a tampa."

P.S.: O sebo Só Ler merece uma tarde sem pressa. Também encontrei por lá exemplares ótimos de literatura pulp, uma edição de Suave é a Noite por R$ 7 e vários títulos de Rubem Fonseca e Marina Colasanti. Fica na Av. Júlio de Castilhos, 1.392, quase esquina com Alfredo Chaves, fone 3225.5877.


Fragmentos

"Às vezes o amor que se dá pesa, quase como responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz... Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais as pessoas quando não se está cega pelo amor."

Clarice Lispector (Berna, 19 de outubro de 1948)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Peixes, Pássaros, Pessoas

Mariana Aydar está com novo disco na praça. "Peixes, Pássaros, Pessoas" é o segundo álbum da paulistana, mescla samba, baião, gafieira, xote e pop, tem participações de Zeca Pagodinho e Lanny Gordin, flerta com tudo de bom que a MPB contemporânea tem produzido. Enfim, tem tudo para repetir a boa acolhida de "Kavita 1".

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Vesperal de sábado

Cruzamento das ruas Feijó Jr. e Júlio de Castilhos, caos de um sábado à tarde povoado de sacolas, buzinas e gente sangrando pelas calçadas. Tal qual Gentileza, o dos muros coloridos, o andarilho abanava para automóveis sem noção alguma, pura poesia em meio à pressa. Alguns buzinavam, outros ignoravam, tolos riam, ninguém acenava. Calças imundas, barriga rompendo os limites de um casaco duas vezes menor, cabelos desgrenhados, sorriso de amor, feição de quem aceita, traços de sim, sempre sim - de fato, existem rostos sim e rostos não.
Distraído defronte ao sinal, o homem X avista de longe aquele ser que, de imediato, lembrou Macabéia, aquela "tão tosca que sorri para as pessoas na rua, mas é solenemente ignorada". O que faz ali, por Deus? Abana, abana, abana, olha para os carros, será que alguém retornou o gesto? Não. O homem X abaixa o vidro do veículo, avança rente à calçada, olha nos olhos da gentileza travestida em panos rotos, abana e segue. Esboça um meio sorriso. Pelo retrovisor, avista o breve aceno de volta, o doido a fazer-lhe festas em plena esquina. Adentra a Sinimbu com a certeza de que compartilhara Deus como nunca havia experimentado.
Era capaz de.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O almoço

A sala dos fundos do restaurante era território demarcado: ora casais com filhos pequenos, ora casais sem filhos. Singles eram espécie rara. De fato, lá estavam todos: marido, mulher e filho, almoçando no cômodo reservado. Mal se olhavam, a comida boa e barata e a fome anulavam comentários. O menino, 11 anos e uma franja, sofria a cada garfada. Não dominava o ato de comer spaghetti, dedos entrelaçados rumo a uma espiral que nunca se formava. Sorvendo o suco pelo canudo fazia aquele barulho abominado por pais e mães.
- Não foi assim que ensinei - corrigiu o senhor, sem desviar os olhos do prato.
A mulher observava em silêncio, sem julgar. Sua função era outra. Talheres cruzados rapidamente frente ao compromisso dali alguns minutos, acabou por trincar o copo. Baixou a cabeça, mas de soslaio percebeu a reprovação dos vizinhos de mesa. A placidez das divindades hindus era mero adorno nas paredes.
- De novo, todo dia acontece algo assim. Não tem jeito, não?
Não percebia que a intolerância do marido havia se transformado em acompanhamento diário do feijão-com-arroz - engolia às pressas asperezas e outros embutidos. Desde o nascimento do garoto fora assim e nenhum copo lascado iria mudar o rumo dessa história.
Do outro do lado da saleta, o calor de fevereiro inundava de suor duas testas expostas ao sol. O casal mais jovem, e tão mais absorto, demorou a reparar no cenário de violência que se desenhava a poucos centímetros - o afeto recém descoberto protegia-os de qualquer contaminação.
A mulher levantou-se. Disposto o guardanapo ao lado do prato e passado o rubor, dirigiu-se ao final do corredor, ao único lavabo do lugar. Empilhado de cadeiras, plantas e outros entulhos, mal lembrava sua real função, um lavatório. Fitou o espelho, fitou-se sozinha. E viu o que momentos antes despertara o desprezo do homem, um rosto que nada lembrava o seu.
O vinco que formou-se entre as sobrancelhas espessas deu-lhe o norte: era ela também vertical, obedecia ao que vinha do alto. Pasma, como quem descobre por acaso a senha de um cofre secreto, recordou da altura absurda do marido, funcionário da construção civil acostumado a julgar de cima, superior. Percorreu a testa larga com os dedos, as maçãs do rosto semelhantes à rotina de sulcos e solavancos, indiferença que marca. Desenhava círculos na face, perscrutava aquele território pouco explorado, descobria-se em gestos prosaicos. Era vermelha, sardas proeminentes, baixa auto-estima desde sempre, a diferente entre uma legião de crianças loiras de olhos azuis. Por que deixara-se oxidar? Buscou argumentos, mas paliativos costumam ser inúteis diante de um espelho. A imagem, bruta forma, agrediu-a. Era uma pergunta sem resposta. O reflexo triplo gerado pelas aberturas do armário multiplicou-lhe a palidez, multiplicou a dúvida. Pra que? Pra quem? Será?
Sentou-se à borda da velha banheira, aguardou mais alguns segundos antes de marido e filho estranharem a ausência e saiu. No corredor, a uma distância que permitia visualizar apenas parte da silhueta de ambos, deu início à revolução. Antes que lhe lembrassem da consulta médica, aproximou-se com a firmeza de quem um dia pariu, mãos em punho sobre a mesa, voz doce:
- Hoje vamos tomar café na rua.
E antes de qualquer reação dos dois:
- Porque eu quero.
Lá fora, o sol brilhava com o vigor das 13h.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

401

O prédio andava em reformas, trabalhadores dependurados na marquise, daí a chuva de pó a salpicar o casaco de veludo preto logo na entrada. O corretor, interessadíssimo em lucrar com aquele elefante branco encalhado há anos, fazia de tudo para agradar - são peças grandes, banheiros ótimos, olha essa mesa de centro com mármore, dá para jogar xadrez em cima. O apartamento estava mobiliado - aliás, parecia que alguém saira correndo, sem tempo de recolher nem os badulaques de uso pessoal. Havia aparelhos de tevê demodês em quase todos os cômodos. Nos armários, longos vestidos de festa bordados, camisolões, chambres e travesseiros de pena acusavam que ali vivera uma senhora abastada - mesmo que hoje tudo cheirasse a uma mistura de naftalina e decadência. Onde fora parar? Estava vivendo no Rio de Janeiro, com a filha e o genro, informou o cicerone, dando a entender que a velha agora sofria de esquizofrenia e nem sabia mais quem era ou o que fora, os verbos sempre no passado.
Procurava por um apartamento antigo, último andar, central. De preferência sem vizinhos de porta, educação de faz-de-conta e sapatos trotando sobre sua cabeça durante a leitura. Sim, odiava essa "classe" tão pronta a receber novos moradores. Finalmente achara. E mesmo antes de conhecer o imóvel internamente já sabia quem habitava os pisos inferiores: um engenheiro químico de cabelos negros e meticulosamente aprumados com gel, o casal de meia-idade e seus dois poodles beges de sujo, a ex-professora de Letras aposentada - agora uma guia turística de humor instável - e um estudante de Direito solteiro e recém-chegado à cidade. Ao novato coube o porão, remodelado em cômodos para moradia.
Sempre prestara atenção na estrutura daquela construção, um quê de arquitetura modernista, mas castigada pelo tempo. Descascado, mal-cuidado, remendos de reboco, com prováveis infiltrações, o prédio encantava-o. Teria gosto em morar naquele mausoléu imponente de outrora, as árvores do jardim quase secas, o verde escasso, as escadarias que não recebiam cera nos tacos há anos. Nada que uma faxina e um bom paisagismo não dessem jeito.
- Por que não aluga? Depois pode fazer uma proposta de compra. Esses apartamentos antigos hoje são tão pouco valorizados, uma pechincha - sugeriu o jovem, metido em um terno surrado, as mangas encobrindo as mãos, provavelmente tão mal reformado quanto o imóvel que tentava desovar.
- Quero comprar, mas dependo de financiamento e outras burocracias. Além do mais, vou dividir com outras pessoas e quero a opinião delas - mentiu. Não queria ninguém dividindo o mesmo teto, nunca mais.
Nesse intervalo, porta entreaberta, receberam a visita da tal guia, sem nenhuma viagem agendada para aqueles dias e disponível para a bisbilhotice. Um fio de voz, seca de cigarro, penetrou o apartamento até o cômodo final. Fitou longamente o jovem.
- Acho que agora os fantasmas finalmente irão embora - disse e saiu áspera, naqueles chinelos de pom pom.
O corretor, enrubecido, tentou contornar. Abriu a porta que chegava à varanda frontal - que vista espetacular! Mas o futuro inquilino mal percebeu, nem quis olhar, pasmo com a atitude da invasora.
- Essa aí nem sabe o que diz - disfarçou, ampliando o insólito da cena.
Súbito, deixou o quarto. Olhou as arandelas da sala, os sofás de couro marrom, estilo capitonê, o lustre pendido na escadaria que antes o levara ao mezanino, a lareira separando o jantar do estar. Um tesouro a procura de um olhar mais apurado. A visita ao restante da casa aguçou ainda mais a necessidade de criar vínculo com aquele lugar, cão que escolhe dono e não vice-versa. O apartamento escolhera-o. No futuro, o gasto carpete verde seria apenas uma lembrança risível, tábuas decorariam o chão com muito mais propriedade, os banheiros receberiam ladrilhos feitos sob encomenda, uma parede de tijolo aparente daria fim ao horror dos azulejos setentistas. Enfim, desenhava-se o refúgio dos sonhos.
A trilha de fumaça deixada pela guia levou-os até a saída. Lá embaixo, frente a frente com peões da obra, percebeu que apontavam para os galhos da única árvore frondosa daquele jardim árido de concreto e grades.
- Vão podar?
- Não, estamos colocando veneno todo dia na raiz para ela secar, senão eles não liberam o corte - riu o servente, vendo-o sair abrupto.
Dias depois, passou novamente defronte ao prédio. Viu que o apartamento fora locado. Por 12 meses, receberia toda sorte de gente. Famílias imensas e ruidosas, o carpete em frangalhos, o odor de gordura invadindo os corredores. Pensava no destino que teria toda aquela indumentária cafona, os monitores de tevê com placas de madeira, os quadros de paisagens kitschs. Sempre que contornava a rua observava o edifício, um vaivém de gente. Até a mudança daqueles fulanos ele acompanhou de longe - já vão tarde, invasores. Placa de oferta novamente na janela, ele retornou ao prédio. E, contrariando qualquer previsão, todas as tralhas e badulaques ainda estavam lá, intactos. A árvore não secou e, defronte ao Corcovado, a ex-dona sorria sem entender.