quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O almoço

A sala dos fundos do restaurante era território demarcado: ora casais com filhos pequenos, ora casais sem filhos. Singles eram espécie rara. De fato, lá estavam todos: marido, mulher e filho, almoçando no cômodo reservado. Mal se olhavam, a comida boa e barata e a fome anulavam comentários. O menino, 11 anos e uma franja, sofria a cada garfada. Não dominava o ato de comer spaghetti, dedos entrelaçados rumo a uma espiral que nunca se formava. Sorvendo o suco pelo canudo fazia aquele barulho abominado por pais e mães.
- Não foi assim que ensinei - corrigiu o senhor, sem desviar os olhos do prato.
A mulher observava em silêncio, sem julgar. Sua função era outra. Talheres cruzados rapidamente frente ao compromisso dali alguns minutos, acabou por trincar o copo. Baixou a cabeça, mas de soslaio percebeu a reprovação dos vizinhos de mesa. A placidez das divindades hindus era mero adorno nas paredes.
- De novo, todo dia acontece algo assim. Não tem jeito, não?
Não percebia que a intolerância do marido havia se transformado em acompanhamento diário do feijão-com-arroz - engolia às pressas asperezas e outros embutidos. Desde o nascimento do garoto fora assim e nenhum copo lascado iria mudar o rumo dessa história.
Do outro do lado da saleta, o calor de fevereiro inundava de suor duas testas expostas ao sol. O casal mais jovem, e tão mais absorto, demorou a reparar no cenário de violência que se desenhava a poucos centímetros - o afeto recém descoberto protegia-os de qualquer contaminação.
A mulher levantou-se. Disposto o guardanapo ao lado do prato e passado o rubor, dirigiu-se ao final do corredor, ao único lavabo do lugar. Empilhado de cadeiras, plantas e outros entulhos, mal lembrava sua real função, um lavatório. Fitou o espelho, fitou-se sozinha. E viu o que momentos antes despertara o desprezo do homem, um rosto que nada lembrava o seu.
O vinco que formou-se entre as sobrancelhas espessas deu-lhe o norte: era ela também vertical, obedecia ao que vinha do alto. Pasma, como quem descobre por acaso a senha de um cofre secreto, recordou da altura absurda do marido, funcionário da construção civil acostumado a julgar de cima, superior. Percorreu a testa larga com os dedos, as maçãs do rosto semelhantes à rotina de sulcos e solavancos, indiferença que marca. Desenhava círculos na face, perscrutava aquele território pouco explorado, descobria-se em gestos prosaicos. Era vermelha, sardas proeminentes, baixa auto-estima desde sempre, a diferente entre uma legião de crianças loiras de olhos azuis. Por que deixara-se oxidar? Buscou argumentos, mas paliativos costumam ser inúteis diante de um espelho. A imagem, bruta forma, agrediu-a. Era uma pergunta sem resposta. O reflexo triplo gerado pelas aberturas do armário multiplicou-lhe a palidez, multiplicou a dúvida. Pra que? Pra quem? Será?
Sentou-se à borda da velha banheira, aguardou mais alguns segundos antes de marido e filho estranharem a ausência e saiu. No corredor, a uma distância que permitia visualizar apenas parte da silhueta de ambos, deu início à revolução. Antes que lhe lembrassem da consulta médica, aproximou-se com a firmeza de quem um dia pariu, mãos em punho sobre a mesa, voz doce:
- Hoje vamos tomar café na rua.
E antes de qualquer reação dos dois:
- Porque eu quero.
Lá fora, o sol brilhava com o vigor das 13h.

Um comentário:

Dani Lispector disse...

"Irei até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva, irei onde meu fôlego me levar."

Clarice Lispector in A Hora da Estrela