sábado, 7 de fevereiro de 2009

401

O prédio andava em reformas, trabalhadores dependurados na marquise, daí a chuva de pó a salpicar o casaco de veludo preto logo na entrada. O corretor, interessadíssimo em lucrar com aquele elefante branco encalhado há anos, fazia de tudo para agradar - são peças grandes, banheiros ótimos, olha essa mesa de centro com mármore, dá para jogar xadrez em cima. O apartamento estava mobiliado - aliás, parecia que alguém saira correndo, sem tempo de recolher nem os badulaques de uso pessoal. Havia aparelhos de tevê demodês em quase todos os cômodos. Nos armários, longos vestidos de festa bordados, camisolões, chambres e travesseiros de pena acusavam que ali vivera uma senhora abastada - mesmo que hoje tudo cheirasse a uma mistura de naftalina e decadência. Onde fora parar? Estava vivendo no Rio de Janeiro, com a filha e o genro, informou o cicerone, dando a entender que a velha agora sofria de esquizofrenia e nem sabia mais quem era ou o que fora, os verbos sempre no passado.
Procurava por um apartamento antigo, último andar, central. De preferência sem vizinhos de porta, educação de faz-de-conta e sapatos trotando sobre sua cabeça durante a leitura. Sim, odiava essa "classe" tão pronta a receber novos moradores. Finalmente achara. E mesmo antes de conhecer o imóvel internamente já sabia quem habitava os pisos inferiores: um engenheiro químico de cabelos negros e meticulosamente aprumados com gel, o casal de meia-idade e seus dois poodles beges de sujo, a ex-professora de Letras aposentada - agora uma guia turística de humor instável - e um estudante de Direito solteiro e recém-chegado à cidade. Ao novato coube o porão, remodelado em cômodos para moradia.
Sempre prestara atenção na estrutura daquela construção, um quê de arquitetura modernista, mas castigada pelo tempo. Descascado, mal-cuidado, remendos de reboco, com prováveis infiltrações, o prédio encantava-o. Teria gosto em morar naquele mausoléu imponente de outrora, as árvores do jardim quase secas, o verde escasso, as escadarias que não recebiam cera nos tacos há anos. Nada que uma faxina e um bom paisagismo não dessem jeito.
- Por que não aluga? Depois pode fazer uma proposta de compra. Esses apartamentos antigos hoje são tão pouco valorizados, uma pechincha - sugeriu o jovem, metido em um terno surrado, as mangas encobrindo as mãos, provavelmente tão mal reformado quanto o imóvel que tentava desovar.
- Quero comprar, mas dependo de financiamento e outras burocracias. Além do mais, vou dividir com outras pessoas e quero a opinião delas - mentiu. Não queria ninguém dividindo o mesmo teto, nunca mais.
Nesse intervalo, porta entreaberta, receberam a visita da tal guia, sem nenhuma viagem agendada para aqueles dias e disponível para a bisbilhotice. Um fio de voz, seca de cigarro, penetrou o apartamento até o cômodo final. Fitou longamente o jovem.
- Acho que agora os fantasmas finalmente irão embora - disse e saiu áspera, naqueles chinelos de pom pom.
O corretor, enrubecido, tentou contornar. Abriu a porta que chegava à varanda frontal - que vista espetacular! Mas o futuro inquilino mal percebeu, nem quis olhar, pasmo com a atitude da invasora.
- Essa aí nem sabe o que diz - disfarçou, ampliando o insólito da cena.
Súbito, deixou o quarto. Olhou as arandelas da sala, os sofás de couro marrom, estilo capitonê, o lustre pendido na escadaria que antes o levara ao mezanino, a lareira separando o jantar do estar. Um tesouro a procura de um olhar mais apurado. A visita ao restante da casa aguçou ainda mais a necessidade de criar vínculo com aquele lugar, cão que escolhe dono e não vice-versa. O apartamento escolhera-o. No futuro, o gasto carpete verde seria apenas uma lembrança risível, tábuas decorariam o chão com muito mais propriedade, os banheiros receberiam ladrilhos feitos sob encomenda, uma parede de tijolo aparente daria fim ao horror dos azulejos setentistas. Enfim, desenhava-se o refúgio dos sonhos.
A trilha de fumaça deixada pela guia levou-os até a saída. Lá embaixo, frente a frente com peões da obra, percebeu que apontavam para os galhos da única árvore frondosa daquele jardim árido de concreto e grades.
- Vão podar?
- Não, estamos colocando veneno todo dia na raiz para ela secar, senão eles não liberam o corte - riu o servente, vendo-o sair abrupto.
Dias depois, passou novamente defronte ao prédio. Viu que o apartamento fora locado. Por 12 meses, receberia toda sorte de gente. Famílias imensas e ruidosas, o carpete em frangalhos, o odor de gordura invadindo os corredores. Pensava no destino que teria toda aquela indumentária cafona, os monitores de tevê com placas de madeira, os quadros de paisagens kitschs. Sempre que contornava a rua observava o edifício, um vaivém de gente. Até a mudança daqueles fulanos ele acompanhou de longe - já vão tarde, invasores. Placa de oferta novamente na janela, ele retornou ao prédio. E, contrariando qualquer previsão, todas as tralhas e badulaques ainda estavam lá, intactos. A árvore não secou e, defronte ao Corcovado, a ex-dona sorria sem entender.

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