terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Do líquido estado

A aurora anunciava que aquele sábado seria polpudo. Pela primeira vez, numa espécie de desejo tácito, comera uvas no café da manhã. Transporte à espera dos passageiros, o grupo aos poucos emergia das formalidades e acomodava-se nos assentos. Se intimidade não houvesse, logo criava-se a obrigação de ser simpático com todos. Assim foi, durante cerca de uma hora pela estrada de chão batido, pedras, bois, escavadeiras, macelas, galinhas e toda sorte de acompanhamento visual. Vez por outra tecia comentários sofríveis sobre o tempo, a provável água gélida do rio, a proximidade, os minutos que restavam para o destino imaginário se transformar em cenário real: um sítio incrustrado na finaleira de um vilarejo desprovido de qualquer luxo.
Chinelo de tiras nos pés, mal acreditou que as extremidades teriam horas e horas de liberdade - amigos chegaram a fotografar o insólito da cena. Aos poucos, reconheceu o terreno. Mãe e filho anfitriões deram o serviço, simpáticos e hospitaleiros. Sentia o passado. Era daquele lugar, mas com restrições. À mesa, frente a frente com desconhecidos e outros nem tanto, o almoço seguia em alvoroço. Batatas, vinho, folhas verdes, animais sacrificados, um tom de voz mais grave, um nativo empolgado, ruído em excesso. Saiu para fumar. Dali a duas horas, a água do rio removeria todo aquele contato forçado. O líquido como redoma.
A cabana fora transformada em capela. Acomodou-se entre pelegos estendidos no piso. Teto e paredes jorravam cores, traços e ícones do passado, de tudo e todos que fizeram a fama do lugar: benzedeiras, sacerdotes, seres alados, criaturas mitológicas, poetisas. Era o intervalo para o céu que se desenharia a seguir, pensava, até o chamado oficial para o passeio da tarde.
Trilha concluída, fez-se o aquoso. De uma lucidez capenga, aguardou pelo grupo entrar, um por um. Foi o último a contatar pele e criação divina. Intimidade posta, arriscou mergulhar na parte mais profunda e também no abismo de si, cujos limites não costumava ultrapassar. O sujeito oculto agora entrava em choque térmico. De súbito, pulou da parte mais alta da cachoeira. Gritavam os amigos. O precipício era o seu máximo. Mas lá embaixo, alojado na pequena caverna recortada pela força da água, percebeu que a violência cuspida do alto era a epifania buscada inutilmente em consultórios e receituários. Era preciso adaptar-se urgentemente à lei daquele espaço ínfimo, à erosão implacável que ao mesmo tempo esculpe e deforma. O fez, sem resistência. O grupo afastara-se. De volta às pedras, nem uma palavra, o sol na cabeça. Rochas serviam de apoio para as costas, a força da água a moldar musculatura, pescoço, nuca, o dorso de quem carrega culpas e pesos desnecessários. Saiu liberto. Era um ser do lugar, enfim, batizado pela segunda vez. Quando perguntavam o porquê de nunca mais ter voltado, silêncio. Por enquanto, estava a salvo. Mas ao menor sinal de perigo, o rio ainda estaria lá.

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